quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Será Natural Comer Carne?

Se considerarmos os animais carnívoros como gatos, leões, cobras ou tubarões a resposta será “sim”. Toda a sua estrutura anatómica demonstra aptidão para caçar e digerir carne. São velozes para perseguir e alcançar as presas, possuem garras ou dentes afiados para golpear e rasgar a carne e também um sistema digestivo que lhes permite uma digestão ácida e rápida (ao contrário da nossa, neutra a alcalina e longa). Deste modo a carne de um animal, que entra imediatamente em processo de decomposição assim que é morto, pode ser digerida rapidamente e os efeitos nocivos do seu apodrecimento, eliminados pelo ph ácido da saliva e suco gástrico dos animais carnívoros.

Será também natural o ser humano alimentar-se de carne? Ouvimo-lo tantas vezes ao longo da vida que a maioria nem sequer o questiona. Faz parte da nossa cultura, tal como faz parte de outras comer larvas e insectos ou mesmo cães e gatos. Mas será realmente “natural” apesar de cultural? A cultura é um conceito que inclui hábitos propagados por linhas de transmissão sociais e familiares. Algo que é dito muitas vezes e repetido ao longo dos tempos, torna-se cultural e parte integrante do nosso sistema de crenças, o que não significa ser verdadeiro ou correcto. O que nos é natural é-o instintivamente, tal como acontece com outros animais. Um leão já nasce com o instinto de caça, não sendo necessário ensiná-lo a escolher o tipo de dieta que deve seguir durante a sua vida. No seu habitat natural todos os animais sabem instintivamente o que precisam e querem comer, incluindo nós, animais humanos.

Tomemos este exemplo: ao colocarmos um morango na mão de uma criança e na outra um pintainho, entre ambos, qual a criança comerá? E com qual dos dois a criança brincará? Se a criança brincasse com o morango e desse uma dentada no pintainho, o que pensaríamos dela? Estaria possuída ou sofreria de psicopatia, certo? Mas porquê, se é “natural” comermos carne?

Imagine agora uma situação parecida, mas consigo. Está numa sala onde se encontram um bezerro (vivo) e um cesto com uvas cerejas e morangos. O que lhe apetece comer, o bezerro ou a fruta? Se estivesse mais uma pessoa consigo na sala e de repente empunhasse uma faca, golpeasse o bezerro e, ali à sua frente, lhe cortasse a carne e a fosse comendo, abrir-lhe-ia o apetite ou provocar-lhe-ia repugnância? Talvez até lhe causasse dor assistir ao sofrimento e morte do pequeno e inocente animal, estarei errada?

São exemplos usados em palestras, por James Wildman, Educador Humano na ARFF (The Animal Rights Foundation of Florida), como forma de demonstrar que nem tudo o que aceitamos como “natural”, por fazer parte dos nossos preconceitos culturais, o é realmente. A maioria não conseguiria matar um animal e muito menos comê-lo de seguida. Muitos, nem conseguem comer uma animal cuja vida testemunharam, por esse motivo, a carne dos animais chega ao consumidor “disfarçada” de modo a que ninguém imagine o sofrimento por detrás de uma embalagem de bifes, fiambre, bacon, salsichas ou hambúrgueres. Mas não apenas o aspecto da carne tem de ser disfarçado para se tornar apetecível como também os nomes não revelam o que na realidade se está a comer e, especialmente, disfarça-seo seu sabor. Cozinha-se, tempera-se, adultera-se o mais possível o sabor da carne porque, naturalmente, o ser humano, não gosta de a degustar crua e sem temperos. É verdade que algumas pessoas “aprendem a gostar” da carne crua de animais, mas não lhes é inato, trata-se de um “gosto” aprendido e induzido e, ainda assim, é quase sempre servida com bastante tempero e sem sangue. Diria que “natural” é não apreciarmos o sabor da carne, uma vez que a anatomia da nossa espécie não oferece capacidade para caçar ou para a digerir convenientemente, o que, a longo prazo, pode trazer complicações graves de saúde e não raras vezes fatais.

São já incontáveis os estudos que associam o consumo de carne ao colesterol elevado, diabetes, cancro (do pulmão, cólon, próstata, entre outros), tensão arterial alta, doenças cardiovasculares, AVC’s, obesidade ou osteoporose. A OMS (organização Mundial de Saúde) e a UE (União Europeia) têm apelado para que se reduza o mais possível o consumo de carne pela nossa saúde e também pela do planeta, dado que a indústria de produção animal é a mais poluente de todas. A criação e produção de animais para consumo é responsável por 51% das emissões mundiais de gases com efeito de estufa, além de ser responsável por 91% da desflorestação da Amazónia e uma das maiores consumidoras de água doce.

Segundo um relatório publicado em 2006 pela Organização da Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), a pecuária é uma das maiores contribuidoras para os mais graves problemas ambientais a todos os níveis, do local ao global, incluindo a degradação do solo, alterações climáticas, poluição do ar, poluição e escassez da água, extinção de espécies marinhas e terrestres e perda da biodiversidade. Deste modo, uma mudança nos hábitos alimentares que envolva a redução do consumo de carne e lacticínios é visto como a estratégia possível a fim de combater o aquecimento global. De acordo com o biólogo estadunidense Edward O. Wilson, da Universidade Harvard, só será possível alimentar a população mundial, no final do século, se todos forem vegetarianos. Estima-se que existam cerca de 600 milhões de vegetarianos no mundo. Trata-se de uma tendência humana, não apenas pela saúde ou pela vida do planeta mas especialmente devido ao crescente respeito pelos animais não humanos.



Tomado o conhecimento de que não precisamos de consumir carne para sobreviver, é inevitável encarar o problema do ponto de vista ético. Teremos, afinal, o direito de escravizar e matar seres sencientes como nós? Sujeitá-los, desnecessariamente, a uma vida de sofrimento desde o nascimento até ao momento da morte não menos cruel? É uma questão que requer humildade de modo a nos predispormos a colocar em causa os nossos hábitos e não os há tão profundos que não sejam questionáveis e educáveis, tal como os gostos. Qualquer que seja o caminho que escolhamos devemos ter sempre em mente que as nossas atitudes revelam a ética com que regemos as nossas escolhas individuais e que a nossa história pessoal é feita disso mesmo, de pequenas e grandes escolhas.


(Texto de C. Vantacich publicado na revista Boa Estrela de Fevereiro 2014)


Tabela de características digestivas



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